A RELIGIÃO COMO PROJETO EDUCACIONAL EM “A
EDUCAÇÃO DO GÊNERO HUMANO” DE G. E. LESSING
Marcos Fábio A. Nicolau!
Resumo: O presente texto pretende apresentar a relação entre a filosofia/teologia da
história e o ideal de formação da humanidade a partir da religião enquanto uma proposta
pedagógica em “A Educação do Gênero Humano” de G. E. Lessing. Ao relacionar
analogamente a educação com o processo de revelação ocorrido tanto no indivíduo
como no gênero humano, o estudo interpreta a proposta de Lessing enquanto um projeto
educacional, o que pode ser demonstrado pela forte influência que o mesmo exerceu
sobre o processo de reformas educacionais na Alemanha entre os séculos XVII e XIX.
Palavras-chave: Bildung, Revelação, Filosofia da Educação.
Abstract: This paper aims to present the connection between the Philosophy/Theology
of History and the ideal of humankind training from Religion as a pedagogical proposal
in “The Education of the Human Race” by G. E. Lessing. By linking the education with
the process of revelation occurred both in the individual and in the human race, this
study interprets Lessing's proposal as an educational process, which can be
demonstrated by the strong influence that it exerted on the Germany process of
educational reforms between the eighteenth and nineteenth centuries.
Keywords: Bildung, Revelation, Philosophy of Education.
A formação da humanidade fora um tema de grande relevância no pensamento
ocidental dos séculos XVIHI-XIX. Votando-nos a realidade alemã, a temática fora
debatida a partir de diversas perspectivas, oriundas das reflexões de pedagogos,
filósofos, poetas, literatos e cientistas das mais variadas áreas. Em comum tais reflexões
tinham a incidência sobre o desafio pedagógico, ou seja, saber qual a melhor forma de
formar/educar o homem. Desafio representado na cultura alemã pelo ideal da Bildung?,
' Doutor em Educação pela UFC. Professor Assistente do Curso de Filosofia e Colaborador do Mestrado
Profissional em Saúde da Família da Universidade Estadual Vale do Acaraú — UVA/RENASF. Membro
do Grupo de Pesquisas em Filosofia da Religião — GEPHIR-UVA/CNPq e do Grupo de Estudo e Pesquisa
em Ensino de Filosofia — GEPEFIL/UVA. E-mail: marcosmcj O yahoo.com.br
2 Este vocábulo designa uma das figuras históricas determinantes — talvez a última — do que ainda hoje
entendemos como cultura, ao lado de morde (paidéia), eruditio e Aufkliirung. Em nossa proposta de tese,
Bildung expressa, sobretudo, o processo da cultura, da formação pela qual o indivíduo passa, motivo pelo
qual adoto a expressão “formação cultural”, conforme a proposta de tradução de Suarez (2005, p. 192).
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que impunha a compreensão de que a educação possibilita e capacita o sujeito a
conseguir determinar sua vida de forma autônoma, superando as condições de
fragmentação as quais estaria suscetível.
Essa proposta, de teor oitocentista, surge assim como algo inseparável de uma
profunda vontade de divulgação do saber e da educação das massas, o que faz da época
acima mencionada um dos momentos históricos no qual se viveu mais apaixonadamente
na Europa esse desafio de formar a humanidade. O que pode ser comprovado, por
exemplo, pelo fato de, na Alemanha, surgirem mais escritos e artigos sobre educação e
ensino nessa passagem do século XVIII ao XIX, que nos últimos três séculos anteriores
juntos (cf. MENZE, 1975, p. 11). Sendo o século XVIII o “século pedagógico” por
excelência, não é de se espantar que os grandes poetas alemães, assim como os neo-
humanistas e os filósofos idealistas do final desse século, tenham se envolvido tão
profundamente com a questão da educação. Não sendo por acaso que suas obras tomem
forma de verdadeiros tratados sobre educação, constituidores de todo um espaço cultural
de cultivo interior, que se tornou o verdadeiro mote de todo o sistema educacional
alemão.
Para tal, esses pensadores começaram a atacar o currículo escolar latino,
oferecendo uma visão alternativa: queriam que o Estado, e não as igrejas, organizasse as
escolas e regulasse os estudos. Como se verá a frente, uma das propostas era a de que as
crianças deveriam estudar a língua nacional, bem como a história latina e nacional. O
Estado deveria garantir às crianças o ensino de uma “boa moral”, baseada em verdades
éticas fundamentais, essencial, na visão desses pensadores, para o bem-estar da
sociedade. Finalmente, quiseram fornecer o ensino básico para a população como um
todo, mas não chegaram a endossar uma educação universal. Ainda que os governantes
não se propusessem, em um primeiro momento, a uma mudança tão radical na esfera
educacional, cresce a ideia de que “a instrução pública é um dever da sociedade para
com seus cidadãos” (CONDORCET, 2008, p. 17), principalmente no período pós-
Revolução Francesa.
Não por acaso, justamente na época de 1770 à 1810, quando a Revolução
Francesa, as guerras políticas de Napoleão e o emocionalismo naturalista de J.-J.
Rousseau” se libertaram da velha ordem social da Europa, completou-se no cenário
* Os pensadores e pedagogos germânicos dessa época de reformas foram profundamente influenciados
por Rousseau, e sua ênfase pela união entre a educação pública, produtora do citoyen, e de uma educação
privada, caracterizada pela preservação do homme naturel (cf. HAHN, 1998, p. 3). Nesse sentido, afirma
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intelectual alemão uma das mais grandiosas épocas da história do espírito germânico.
Tais pretensões de consolidar um novo homem influíram diretamente na formação
histórico-cultural alemã, que, embora não tenha vivido uma revolução como o
vivenciaram ingleses e franceses”, assimilaram o ideal iluminista de tal forma, a ser a
Prússia reconhecida por Mme. Stagl” como o país “dos homens mais espirituais da
Europa” (1850, p. 84) — saliente-se que, com uma frequência sem precedentes, teólogos,
filósofos, cientistas, enfim, homens de letras, assumiam cargos importantes na
administração das escolas, universidades e gabinetes governamentais de educação, que
eles mesmos haviam discutido conceitualmente. Que poetas, filósofos e teólogos como
F. D. E. Schleiermacher, J. W. von Goethe, J. G. von Herder, J. G. Fichte, G. W. F.
Hegel e F. A. Wolf, tenham sido encarregados na direção de ginásios, universidades e
mesmo gabinetes governamentais em assuntos educacionais é algo extremamente
sintomático dessa nova função social do intelectual no quadro das reformas pedagógicas
neo-humanistas e da política alemã que lhe foi contemporânea.
O que é ratificado como um dos princípios gerais da teoria de todas as reformas
pensados por Humboldt:
Para efetuar a transição desde a condição atual para a nova que tenha sido
acordada, faz-se possível que cada reforma comece com as ideias e pelas
cabeças dos homens. (HUMBOLDT, 1983, p. 28)
Portanto, um dos fatores que mais contribuíram para a organização do sistema
educacional alemão, são os trabalhos teóricos desses pensadores, dentre os quais
sobressai a figura de G. E. Lessing, de que trata o presente texto.
No campo literário, Lessing fora o ícone de uma classe média burguesa
germânica em ascensão econômica, porém em uma Alemanha ainda longe de ser
Kant na primeira Crítica: “Apenas Rousseau pode tornar, mesmo o mais ensinado filósofo, um homem
honesto e, sem auxílio da religião, pode fazê-lo não considerar a si melhor que o homem comum”
(KANT,1989, p. 298).
* Embora, como nos informa Ringer (2000, p. 15), não devamos exagerar a divergência entre o
pensamento anglo-francês e o alemão durante o século XVIII, pois a questão teórica da educação fora
também muito importante a oeste do Reno. Para este autor, a peculiaridade da situação social alemã era
apenas uma questão de grau, assim como a consequente diferença de orientações intelectuais. Assim não
se deve descrever a tradição intelectual alemã apenas em termos de seu desvio de uma suposta norma
inglesa empresarial-liberal que rege o mundo Europeu nesse período. O que distinguiu a Alemanha foi
exatamente o fato de ter liderado o restante da Europa na criação de um sistema moderno de pesquisa e
educação superior, assim como a Inglaterra liderou a Revolução Industrial.
? Ao escrever em francês, língua franca daquela época, ela que pessoalmente conhecera Goethe, Schiller,
Wieland e August Schlegel, quando em viagem pelo país entre 1803-1804, apresentando-os como “os
homens mais instruídos e os mais meditativos da Europa”, difundiu as idéias e obras deles por todas as
partes. Ainda que sua primeira edição de 1810 fosse interditada pelo regime de Napoleão, em 1814 foi
republicado na Inglaterra, de onde ganhou o mundo. Isto fez de Mme. de Sta&l uma espécie de Tácito de
saias.
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unificada. Prejudicada por guerras, a realidade alemã não oferecia boas condições de
vida para boa parte da população, cujo universo de analfabetos era estimado em cerca
de 80% em meados do século XVIILº Aliás, é interessante salientar que essa população
experimentava também de outra fragmentação, além das política e sócio-econômica: a
do ponto de vista linguístico. No século XVIII o idioma alemão, que não era usado em
publicações, sequer era adotado nas cortes, salvo quando necessário para se dirigir a
subalternos, gente do povo; o francês, assim como toda sua cultura, era a língua eleita —
inclusive pelo monarca, Frederico II. (cf. OZMENT, 2005, p. 138)
Lessing, seus contemporâneos e, em um sentido figurado, o próprio idioma
alemão, tiveram de lutar pelo reconhecimento de sua posição nesse desfavorável
contexto. Sob a égide da Aufklcirung, os pensadores alemães defendiam o uso da razão,
e, sobretudo, compartilhavam um ideal de homem inspirado no modelo clássico,
humanista. Nesse cenário a educação torna-se importante não só para o esclarecimento,
mas também para a formação de um público leitor. Assim, a fisionomia espiritual do
século XVIII, determinada pela Aufklirung, encontra um ponto culminante na eminente
figura de Lessing.
Nessa perspectiva, é interessante compreender que o pensamento lessinguiano
está pautado em uma vontade educadora, no sentido de que se esforça por conduzir a
humanidade à altura dos ideais da Aufkliirung. Por isso, um dos escritos mais peculiares
de Lessing é sua A Educação do Gênero Humano (Erziehiing des
Menschengeschlechts)*, no qual traça uma espécie de esboço da filosofia/teologia da
história a modo de educação progressiva da humanidade, através de erros e rodeios.
é O número de leitores na Alemanha por volta de 1800 era pouco maior que 1% da população total, e
segundo Jean Paul, escritor da época, o público era constituído por uns 300.000 leitores, algo que se
poderia esperar de uma população que em sua maioria vivia no campo e era analfabeta. (cf. BOLLE,
2000, p. 258)
7 Uma informação relevante já que toda uma geração de intelectuais fora influenciada por essa luta, por
exemplo, “Hegel escreveu e lecionou em alemão, no final de um período em que a língua alemã se
tornara, nas mãos de Goethe, Schiller, Lessing, etc., o veículo de uma grande literatura nacional,
comparada as da França, Inglaterra e Itália, e na qual era usada como nunca antes para expressar ideias
científicas, filosóficas e culturais.” (INWOOD, 1997, p. 17). Esse movimento de defesa da língua alemão
chegou ao ponto de o próprio rei Frederico escrever as memoráveis palavras: “O povo alemão não está
desprovido de gênio e intelecto, mas foi dotado por circunstâncias propícias de elevar-se ao mesmo tempo
que seus vizinhos. Nós também temos nossos autores clássicos. Todos os lerão, a fim de cultivar a si
mesmo através deles. Os nossos vizinhos irão aprender alemão. Será falado com prazer nos tribunais, e
pode ser que a nossa língua, quando perfeitamente desenvolvida, se estenda de um extremo ao outro da
Europa.” (STAHR, 1866, p. 258).
* Esse texto apresentado em cem parágrafos, via de regra sucintos, foi publicado em 1780. No mesmo ano
ainda publicou uma continuação de um diálogo de conteúdo crítico diante o Estado e a sociedade, “Ernst
e Falk”, cuja primeira parte foi editada no ano anterior, o mesmo ano em que levou ao público o drama
talvez mais importante dele “Nathan, der Weise”, abordando a questão da tolerância, em especial a
religiosa. Lessing faleceu em fevereiro do ano 1781.
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A meu estudo, cabe salientar, interessa o teor mais pedagógico de sua obra e sua
influência sobre o cenário educacional alemão, pois se configura como um verdadeiro
símbolo do ponto de vista iluminista de educação — mesmo que o próprio autor tenha
avisado que “Esse não é lugar de entrar em averiguações sobre o útil que possa ser na
pedagogia considerar a educação desde este ponto de vista” (LESSING, 1982, $3, p.
574), creio que não se pode minorizar, ou mesmo desprezar, sua contribuição aos ideais
da reforma educacional.
Nesse sentido, dita obra vem a constituir por sua vez uma espécie de filosofia da
educação na qual se estabelece um paralelo entre a educação individual e a do gênero
humano, como bem expõe em seus primeiros parágrafos:
O que a educação é no homem singular, a revelação é em relação ao gênero
humano inteiro.
Educação é a revelação que acontece com o homem singular e revelação é a
educação que acontece com o gênero humano e ainda continua acontecendo.
(LESSING, 1982, 8 1-2, p. 574)
Com isso Lessing quer primeiramente dizer que tanto o indivíduo humano
quanto a humanidade na sua totalidade estão sendo submetidos a um processo
educacional. A meta do processo educativo viria a consistir para Lessing na constituição
de uma verdadeira Humanidade, fundamentada antes de tudo em dois pilares: no
desenvolvimento de uma razão autônoma capaz de questionar os dados que maneja e na
capacidade do homem para a prática, em todos os seus âmbitos. Lessing identifica a
educação com uma revelação que acontece com o indivíduo. Algo se revela para ele.
Ainda que possa ser provocada por uma ação exterior, a educação mesma é ratificada
aqui como uma atividade interior do indivíduo. Propõe então um ideal de educação que
deve melhorar o homem, aperfeiçoá-lo em todas as suas dimensões fundamentais. Do
esforço conjunto dos indivíduos resulta o movimento do gênero humano rumo a sua
perfeição.
Como bom Aufklcirer, Lessing tomará como garantida a autonomia intelectual de
cada indivíduo racional, compreendendo o processo pedagógico como mero
instrumento:
A Educação não fornece ao ser humano nada que ele não poderia também
extrair de si mesmo: ela o fornece aquilo que ele poderia tirar de si mesmo, só
que mais rápido e mais fácil. Portanto, a revelação não fornece nada ao gênero
humano do qual a razão humana, deixando ela com ela mesma, não poderia
descobrir: pois ela deu e está dando a ele as mais importantes daquelas coisas,
porém mais cedo. (LESSING, 1982, $4, p. 574)
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Interessante notar nessa época a mudança de perspectiva quanto às diferenças
postas entre os atos de formar, educar, instruir e disciplinar. Todos são parte do
processo de formação cultural (Bildung), mas não são por si mesmos “educação” no
sentido lato, buscado pelos iluministas e, posteriormente, pelos neo-humanistas e
românticos — o que se verá acentuadamente nas reflexões educacionais de Kant (1999,
p. 29-30). Assim, Lessing crê que o ser humano, em princípio, não necessita de
orientações, esclarecimentos ou verdades externas a ele — veja-se aqui a influência que
as ideias de G. W. Leibniz ainda exerciam no pensamento alemão” —, ele mesmo, com
suas próprias forças e principalmente com sua própria razão é capaz de adquirir todos os
conhecimentos que precisa.
O único problema com o qual se confronta é o do tempo. Aprender sem ajuda
externa é plenamente possível, mas leva muito tempo, pois não é fácil. A tarefa da
educação, partindo desse pressuposto, só pode ser uma: ajudar a facilitar o caminho. A
educação evita uma condenação das futuras gerações a um eterno retorno. O educando
pode e deve aproveitar-se das experiências já acumuladas pela humanidade, porém não
pode o pedagogo esquecer que todas essas experiências e conhecimentos têm que ser
considerados como acessíveis, em princípio, a qualquer ser humano pela própria razão
(cf. LESSING, 1982, $26, p. 579). Aligeirar o processo não pode significar dispensar a
capacidade do educando de chegar a uma certeza própria sobre os conhecimentos
antecipados. Lessing explica tal perigo, ao comparar isso ao
resultado que o professor de aritmética adianta a seus alunos para que de algum
modo se orientem por ele em seus cálculos. Porém, se os alunos se
contentassem com o resultado adiantado, não aprenderiam a calcular nunca e
fariam mau uso do propósito com o qual o bom mestre lhes deu uma pista para
seu trabalho. (LESSING, 1982, 8 76, p. 590)
? Na metafísica leibniziana, as mônadas — enquanto substâncias simples — são os verdadeiros átomos da
natureza, e, em uma palavra, os elementos das coisas. Para Leibniz, uma mônada jamais poderá ser
alterada ou modificada em seu íntimo por outra criatura qualquer, pois as mônadas são intransponíveis.
Nem se pode conceber nela — dirá Leibniz — algum movimento interno que, de fora, seja excitado,
dirigido, aumentado, ou diminuído lá dentro, como acontece nos compostos, onde ocorrem mudanças
entre as partes. As mônadas não têm “janelas” por onde qualquer coisa possa entrar ou sair (não existe
interação, uma mônada não influi sobre a outra): “Não há meio também de explicar como a Mônada
possa ser alterada ou modificada em seu íntimo por outra criatura qualquer, pois nada se lhe pode
transpor, nem se pode conceber nela algum movimento interno que, de fora, seja excitado, dirigido,
aumentado ou diminuído lá dentro, como nos compostos, onde há mudança entre as partes. As Mônadas
não têm janelas por onde qualquer coisa possa entrar ou sair” (LEIBNIZ, 1974, 87, p. 63). — A
Monadologia de Leibniz fora escrita em originalmente em francês, em 1714, sendo disponibilizada em
1720 em sua versão alemã por H. Kôhler, tendo um profundo efeito sobre o século XVIII alemão,
principalmente sobre Lessing e Goethe (cf. MARTISON, 2005, p. 47).
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Esse princípio, para Lessing, é tanto verdadeiro para o processo da educação
individual quanto para o do gênero humano. Por isso, refletirá sobre esse tempo interior
na educação:
E assim, como para a Educação não é aleatório em que seqiiência
desenvolvem-se as forças do homem, de forma que ela não pode ensinar tudo
de uma vez, igualmente Deus na sua revelação tinha que seguir uma
determinada ordem, uma determinada medida. (LESSING, 1982,83 5, p. 574)
Por isso, ao comparar o desenvolvimento do gênero ao do indivíduo, Lessing
encontrará essa didática divina na escolha do povo de Israel, que assim como uma
criança teria que ser educado “mediante castigos e prêmios sensíveis e imediatos”
(LESSING, 1982, $16, p. 576). Para Lessing, a história da religião era um relato da
educação espiritual do homem. As religiões históricas são outras tantas etapas desse
processo educativo da humanidade. O Antigo Testamento conduziu o povo de Israel à
adoração de um só Deus muito antes que fosse capaz de entendê-lo racionalmente (cf.
HOGDSON, 1999, p. 39-40). Com sua visão de uma vida ultraterrena, o Novo
Testamento tem educado os homens na simplicidade de sentimentos, o que
caracterizaria uma nova fase no desenvolvimento, ou aperfeiçoamento, do gênero
humano. É a revelação gradual de Deus aos homens, revelação que para todo o conjunto
do gênero humano corresponde ao que é a educação para o indivíduo.
A analogia entre a formação do gênero e a do indivíduo é significativa, pois
marca uma das características gerais da Aufklirung: o interesse pela educação da
humanidade. Em meio a essa proposta germânico-iluminista, a convergência existente
entre revelação e educação para Lessing demonstraria uma pedagogia divina no sentido
de respeitar o tempo de aprendizagem do homem. Pois, não se pode dizer com certeza,
no conjunto das múltiplas dimensões do ser humano, qual é o caminho mais curto para
esse ou aquele educando. A paciência pedagógica no todo se comprova na situação
educacional concreta. E isso principalmente em um aspecto: o da paciência em relação
ao estado de desenvolvimento humano em que o indivíduo se encontra. !º Seguindo o
pensamento de Lessing teríamos que nos perguntar em relação a cada educando se ele
se encontra ainda numa fase em que somente faz o bem por causa das consequências
imediatas que esse ato traz consigo, ou seja, recompensa ao fazê-lo e punição ao fazer o
seu contrário. O que expõe logo à frente:
!º «Não se trata de ganhar tempo, mas de perdê-lo”, essa postura, encontrada no Livro II do Emílio, será a
maior e mais importante regra da educação, segundo o nobre cidadão de Genebra. Essa regra somente
poderia ser desconsiderada “Se as crianças saltassem de uma vez das tetas para a idade da razão”
(ROUSSEAU, 1999, p. 91).
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Revelar-lhe já agora estas coisas, as quais tão pouco avisada estava sua razão,
que outra coisa haveria sido, senão a incorrência de Deus no defeito do
apressado pedagogo que prefere fazer adiantar à criança e vangloriar-se disso,
em lugar de dar-lhe um sólido ensino? (LESSING, 1982, 817, p. 576-577)
Dotar de boas bases o educando deve ser o mais importante procedimento do
pedagogo, em vias de seu sólido ensino, fruto de um caminho percorrido “a passos
lentos, porém seguros” (LESSING, 1982, 821, p. 577), motivo pelo qual lhe é permitido
“saltar algum outro ponto importante da ciência ou da arte que venha expor”, caso note
que tal ponto não está ainda ao alcance da capacidade do educando. Nesse momento,
Lessing reflete sobre os livros elementares, ou seja, os livros escolhidos pelo pedagogo
para estimular o educando, que tem como função deixar aberto ao mesmo “todos os
acessos” aos conhecimentos que propõe expor. No decorrer de tal reflexão, Lessing irá
impor limites ao uso desses livros, apresentando um paralelo desse tipo de livro, dito
elementar, e as revelações bíblicas (Antigo e Novo Testamento), que devem, por uma
natural lógica pedagógica, ser ultrapassados em algum momento pelo gênero humano.
Cabe salientar que em Lessing a razão, além da dimensão epistemológica,
também abrange o estético e principalmente o ético, procedimento que se tornará padrão
no modo de pensar alemão (cf. BEISER, 2009, p. 261-262). Não se trata, ao mesmo
tempo, de um conceito teórico, de belas abstrações teóricas sem repercussão e
confirmação na vida prática. Lessing abominava os pensamentos que serviam para
satisfazer os anseios teóricos sem consequências no agir humano. Não abria mão da
necessidade de coerência entre teoria e prática (cf. MARTISON, 2005, p. 58). O que
fora muito bem exposto por H. Arendt:
Para Lessing, o pensamento não brota do indivíduo e não é a manifestação de
um eu. Antes, o indivíduo — que Lessing diria criado para a ação, não para o
raciocínio — escolhe tal pensamento porque descobre no pensar um outro modo
de se mover em liberdade no mundo. De todas as liberdades específicas que
podem ocorrer em nossas mentes quando ouvimos a palavra “liberdade”, a
liberdade de movimento é historicamente a mais antiga e também a mais
elementar. Sermos capazes de partir para onde quisermos é o sinal prototípico
de sermos livres, assim como a limitação da liberdade de movimento, desde
tempos imemoriais, tem sido a pré-condição da escravização. A liberdade de
movimento é também a condição indispensável para a ação, e é na ação que os
homens primeiramente experimentam a liberdade no mundo. (ARENDT, 2008,
p. 16)
O agir pedagógico, nesse caso, teria a característica de um controle externo,
prático, que mantém o educando via recompensa e repressão no caminho do bem. Essa
pedagogia dos primeiros passos perderia seu sentido no momento em que o educando
começa a fazer o bem, visando metas a médio e longo prazo. A tarefa pedagógica nesse
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caso seria fazer a recompensa no futuro tão estimulante e motivadora para o educando,
que as punições e represálias se tornem sempre mais desnecessárias. O estado mais
maduro em termos de humanidade se alcança, quando as próprias promessas se tornam
dispensáveis, quando o educando encontra o sentido da própria ação no bem em si
mesmo. Ele faz o bem porque encontra o sentido da sua vida nisso. Se essa atitude se
consolidou, o processo de educação chegou ao seu fim. Tal otiminismo teleológico está
presente nas palavras de Lessing:
Ou será que o gênero humano não chegará nunca aos mais altos graus da
ilustração e a pureza? Nunca?
Nunca? Longe de mim pensar semelhante blasfêmia, Deus bondosíssimo! — A
educação tem sua meta, tanto a educação do gênero humano como a do
indivíduo. O que se educa, para algo se educa. [...]
Aponta a isso a educação humana e não vai chegar até aí a educação divina? O
que consegue a arte com o indivíduo, não vai consegui-lo a Natureza com a
totalidade? Blasfêmia, blasfêmia!
Não, não; chegará, seguro que chegará o tempo do cumprimento, quando o
homem, a medida que sua inteligência se vá convencendo de que o futuro será
cada vez melhor, não tenha já necessidade de obter desse mesmo futuro
motivos para suas ações; o tempo no qual o homem fará o bem porque é o bem
e não porque se estabeleçam prêmios arbitrários com o fim propriamente de
fixar e robustecer seu volúvel olhar para que saiba ver os prêmios interiores do
bem, que são melhores. (LESSING, 1982, $81-82 e $84-85, p. 591-592)
A educação tem sua meta. A vontade educadora que perpassa a obra de Lessing,
como dito acima, tem aqui seu ápice. O que se educa para algo se educa. A crença
oitocentista alemã de supremacia da razão humana encontra aqui seu mote, cabe ao
processo educacional a função divina de conduzir o indivíduo a tal meta, assim como
Deus, desde os primórdios, conduz seu povo, ou melhor, o gênero humano. O bem, a
verdade, o esclarecimento são a meta, a realização, a perfeição humana, que devem
sempre ser fim desse processo que é a educação.
Porém, cabe ressaltar, para Lessing não é a posse da verdade, ou mesmo do bem,
senão o esforço para alcançá-la!!, o que determina o valor do homem, ou seja, seu
aperfeiçoamento, princípio que irá guiar as posteriores reflexões pedagógicas
germânicas aplicadas ao sistema educacional. Por isso, outro tema central do
pensamento de Lessing é o problema da relação entre o esforço para a verdade e a
verdade mesma, entre a história e o eterno, entre as conquistas parciais e limitadas que o
“ Diz Arendt (2008, p. 17): “seu pensar não era uma busca da verdade, visto que toda verdade que resulta
de um processo de pensamento necessariamente põe um fim ao movimento do pensar. Os fermenta
cognitionis que Lessing disseminou pelo mundo não pretendiam comunicar conclusões, mas estimular
outras pessoas ao pensamento independente, e isso sem nenhum outro propósito senão o de suscitar um
discurso entre pensadores.”
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homem consegue no tempo e a verdade absoluta. Eis o famoso trecho, no qual Lessing
expõe a busca e não posse como o essencial da condição humana:
O valor do homem não reside na verdade que se possui ou pretende possuir,
mas no esforço sincero que se põe em alcançá-la. Porque as forças que
aumentam a perfectibilidade humana não crescem pela posse, mas pela busca
da verdade. Se Deus, guardando na mão direita toda a verdade e não tendo na
esquerda senão o desejo sempre ardente da verdade, me dissesse: “Escolhe!”,
mesmo correndo o risco de me enganar para sempre e pela eternidade, eu me
inclinaria humildemente para sua mão esquerda e diria: “Pai, dê-me esta mão; a
verdade absoluta pertence somente a ti. (LESSING, 1979, p. 32-33)
Com Lessing as bases foram estabelecidas, surgia um modelo de formação
cultural (Bildung), no qual poderiam guiar-se as instituições escolares na busca de um
ideal de humanidade para o povo alemão.
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